A Avvocatura Generale dello Stato Italiano e a Grande Naturalização

No apagar das luzes do ano de 2019, mais especificamente no dia 03 de dezembro, a Avvocatura Generale dello Stato Italiano, correspondente à Advocacia Geral da União do Brasil, concretizou processualmente e pela primeira vez o mais novo pesadelo dos ítalo-descendentes que buscam o reconhecimento da cidadania italiana através de uma ação judicial em Roma.

A manifestação da Avvocatura, agora recorrente, prega a interrupção da linha de transmissão do direito à cidadania italiana aos descendentes distantes de italianos natos, usando como argumento a “Grande Naturalização” ocorrida no Brasil em 1889, afirmando, em suma, que para aqueles cujo antepassado italiano se estabeleceu no Brasil antes de 15 de novembro de 1889, houve quebra da cadeia de transmissibilidade e, portanto, não há direito ao reconhecimento da cidadania.

Mas afinal, o que foi a “Grande Naturalização”?

“Grande Naturalização” é uma expressão sinônima de naturalização tácita, ou seja, o ato pelo qual o cidadão de um determinado país abdica de sua nacionalidade de origem para abraçar a do país onde reside e o faz em virtude de ato unilateral e discricionário do Estado, fundamentado essencialmente na soberania.

No Brasil, deu-se o nome de “Grande Naturalização” ao procedimento adotado pela Primeira Constituição da República (1891) que, no §4º de seu artigo 69, estabelecia que seriam considerados “cidadãos brasileiros os estrangeiros que, achando-se no Brasil aos 15 de novembro de 1889, não declararem, dentro de seis meses depois de entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem”.

Ora, é sabido que a imigração italiana teve como ápice o período entre 1880 e 1930 e, obviamente, milhares de italianos residiam em território brasileiro na entrada em vigor da norma. E são estas as bases da tese da Avvocatura Generale dello Stato Italiano para tentar obstruir o direito dos ítalo descendentes. A pergunta é: Será que vai conseguir?

Argumentos contra a Avvocatura

Os milhares de italianos que desembarcaram no Brasil eram, em sua maioria, pessoas muito simples, lavradores braçais, que sequer tinham meios para tomarem conhecimento que haviam se tornado brasileiros (e muito menos deixado de ser italianos).

Era impossível, dentro do contexto histórico da época, exigir manifestação contrária daquelas pessoas como forma de manter suas origens. Inclusive, há uma nota do Ministro das Relações Exteriores da Itália à época, Francesco Crispi, endereçada às Embaixadas Italianas de Berlin, Londres, Madrid, Paris e Viena explicitando esse cenário, além de enfatizar que a disposição seria altamente prejudicial por violar o direito internacional e convocar, por fim, a tomada de medidas em conjunto para a revogação ou modificação da norma brasileira.

Houve protestos diplomáticos contundentes em reação à “Grande Naturalização” brasileira e há registros onde foi externada grande preocupação na condução do caso, tendo em vista que o governo brasileiro da época era ainda provisório.

Sendo assim, vários Estados entenderam e se pronunciaram oficialmente no sentido de não estarem dispostos a abrir mão de sua soberania e a Itália, através de Francesco Crispi, declarou a norma brasileira nula e não vinculante para os cidadãos italianos.

Além de todo alvoroço internacional causado pela “Grande Naturalização” brasileira, é importante frisar que a própria lei italiana vigente à época não permitia a renúncia tácita à cidadania italiana. Para tanto, seria necessária uma manifestação de escolha expressa pelo interessado para que tal renúncia pudesse se efetivar.

Numerosas sentenças dos Tribunais Superiores Italianos datadas do início do século XX afirmam, sem pestanejar, que a “Grande Naturalização” imposta pelo governo brasileiro não importava em perda automática da cidadania italiana pelos seus cidadãos residentes no Brasil. A mais emblemática delas é a sentença da Corte di Cassazione de Napoles, de 05 de outubro de 1907, donde se conclui ser a autoridade judiciária italiana aquela competente para decidir se a concessão de cidadania estrangeira ao cidadão italiano o faz perder a cidadania italiana.

Por último, é inegável que a emissão atual da Certidão Negativa de Naturalização (CNN) pelo Ministério da Justiça Brasileiro descarta qualquer dúvida a respeito da naturalização ou não dos então imigrantes italianos. Negar a força probatória da CNN é travar uma batalha diplomática indigesta entre os dois países.

Conculsão

Sendo assim, a “Grande Naturalização” brasileira não teve nenhum efeito prático sobre a nacionalidade dos cidadãos italianos residentes no Brasil, não configurando interrupção alguma sobre a transmissibilidade da cidadania.

Os argumentos contra a manifestação da Avvocatura Generale dell Stato Italiano são bem fundamentados em registros e comunicações oficiais da época, formando um forte arcabouço a favor dos milhares de descendentes que hoje buscam o reconhecimento da cidadania italiana diante do Tribunal de Roma.

Resta agora observar qual será o posicionamento dos magistrados a respeito do tema. As primeiras sentenças versando sobre o assunto começaram a sair e, até onde se tem notícia, todas elas favoráveis à imensa massa de descendentes italianos espalhados pelo nosso Brasil.